quarta-feira, 25 de agosto de 2010

De onde vem o direito

Nessas aulas introdutórias ao Direito Processual Penal, o professor nos trouxe uma pergunta capciosa a respeito de fontes do direito, que me intrigou em alguns pontos.

Ele simplesmente perguntou o que era fonte. As respostas foram imediatas. Fonte seria a origem, o local de onde emana o direito, o nascedouro.
Aprofundando melhor o conhecimento geral, respondemos ainda que tais fontes podem ser mediatas e imediatas. A fonte imediata seria a lei. Os costumes, os princípios gerais do direito e a doutrina seriam fontes mediatas.

Nesse raciocínio, o direito teria como fonte a lei. Então a origem do direito seria a própria lei. Será possível que temos então um direito apenas quando surge uma lei para regulá-la? O direito seria decorrência da própria lei ou existiria primeiro um direito que seria regulado por uma lei em seguida?

E quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?

=D

O objetivo da discussão na verdade não é discutir exatamente de onde vem o direito em si, mas sim a impropriedade do termo fonte como local de onde emana o direito. Está mais para um contexto metalinguístico.
Quando falamos então em fontes do direito, não realçamos o mesmo sentido de origem, mas sim de meio. Meio? Isso mesmo. O meio como se exterioriza o direito. A forma pela qual as regras jurídicas se exteriorizam.

Quanto a isso, estamos ok.

Agora, outra coisa que me chamou a atenção foram as respostas prontas de todos, inclusive as minhas.
A apreensão dos conceitos tem sido feita cegamente por nós, acadêmicos.
Tudo bem que o sistema positivista nos induz a isso, mas até que ponto devemos ceder às imposições do sistema?
Por que apenas decorar os termos sem compreendê-los?
Vejo minha geração estudantil, pelo menos no meu contexto acadêmico, muito condicionada ao pensamento solidificado da doutrina. Isso é comum. Tudo bem. Mas sem um  livro de conceitos estabelecidos, a maioria se perde na compreensão das coisas. A meu ver, isso tem ocorrido pela falta de estímulos que temos em pensar, em analisar a realidade.
Como estudantes do direito, temos que sair dessa seara "alienativo-decorebizante" (neologismo meu... hehe) e chegar ao entendimento por nós mesmos. Não que agora tenhamos que sair criando diversas doutrinas e fazendo aquela rave terminológica, mas sim, compreendendo a essência dos termos e institutos valorizando o nosso pensar.

Além das fontes, que não são exatamente fontes, quantos termos não termos absorvido e rezado piamente sem os mesmos corresponderem plenamente ao seu significado?

Fica o alerta.

Um abraço

P.S.: Aproveito essa postagem para agradecer a todos os professores, em especial ao meu professor de Direito Processual Penal, por nos trazer essas indagações reflexivas, que mostram que há essa preocupação em relação às formas como temos apreendido os conteúdos e que tanto contribuem para a nossa formação.

domingo, 22 de agosto de 2010

Hermenêutica e aplicação do direito - Carlos Maximiliano Parte 6

Levando em consideração que o Direito é uma ciência normativa ou finalística, há uma necessidade de se perquirir qual seja o fim, o escopo, o objetivo maior, de determinada regra.  Nesse sentido, deve-se levar em consideração o elemento teológico no ato interpretativo. No entanto, de nada adianta interpretar uma lei visando o simples descobrimento do fim que ela encerra. É imprescindível compreendê-la como um todo, com suas características jurídicas, históricas, sociais, entre outras.
É por esse motivo que em Hermenêutica e Aplicação do Direito, o autor trata também dos fatores sociais, que são tidos em conta desde a época dos antigos romanos, que adaptavam o sentido da letra dos textos às necessidades da vida e às exigências de seu tempo. A sociedade evolui, e o Direito a acompanha.
Carlos Maximiliano ensina que a interpretação varia conforme o ramo do Direito. Caso isso não ocorresse, os erros de interpretação seriam bem mais freqüentes.  Faz ainda algumas considerações específicas quanto às técnicas interpretativas em relação ao Direito Constitucional, Direito Comercial, às leis penais, entre outros.
A interpretação é uma só. Não há uma interpretação no Direito, outra interpretação na Literatura ou na Sociologia. Tampouco há uma interpretação para o Direito Civil ou o Direito do Trabalho. O Direito também é um só. Interpretar é mais que uma mera atividade de decodificação. É uma ferramenta básica de cognição e de compreensão do homem e de suas relações nos mais variada contextos.
A obra se encerra com a “Oração de Despedida do Ministro Carlos Maximiliano”, contendo esta algumas das grandes contribuições do autor para o desenvolvimento e aprimoramento do Direito no Brasil. Por meio disso, passamos a ter um maior conhecimento acerca de alguns dados biográficos de Maximiliano, e, sem dúvidas, passamos a nutrir respeito e admiração por sua figura respeitosa, de considerável reconhecimento em todo o cenário jurídico nacional.

Hermenêutica e aplicação do direito - Carlos Maximiliano Parte 5

Apesar de destacar que ‘a interpretação é uma só’, Carlos Maximiliano divide-a conforme o órgão de que procede, para fins de melhor aplicação, em interpretação autêntica, que se origina em uma fonte jurídica, tendo então força coativa; e em interpretação doutrinal, aquela que se apresenta como um produto da livre indagação. Continua dissertando acerca dos processos interpretativos: gramatical, ou melhor, filológico; e o lógico, subdividido este em lógico propriamente dito, e social, ou sociológico. Tal posicionamento se revela bem atinente às idéias de Schleiermacher e de Dilthey, que entende a Hermenêutica como um corpo geral de princípios metodológicos que subjazem à interpretação. A Hermenêutica, contudo, ‘não serve como metodologia ou como auxiliar de metodologias dos estudos humanísticos’. Ela vai bem mais além do que isso. A Hermenêutica bem pode ocorrer na prática por remover os obstáculos em relação à compreensão da palavra evento. O foco maior, porém, não é esse, mas sim a interconexão da linguagem com o pensamento e com a realidade, a preocupação com o homem na sua cotidianialidade. 
Conforme Maximiliano, supõe-se que na lei, repositório, tratado ou sistema jurídico não existem disposições contraditórias sobre o mesmo objeto. Quando o intérprete descobrir alguma contradição, deve se inspirar em alguns preceitos diretores doutrinários, como por exemplo, quando há um antinomia entre uma regra geral e uma específica, esta tem a supremacia; ou então quando uma regra é principal e a outra acessória, prevalece a principal.
Temos aí mais uma sequência de procedimentos para aplicar um dispositivo. Tais métodos possuem na maioria das vezes algum brocardo jurídico como correspondente. Por exemplo: “in toto jure generi per speciem derogatur, et illud potissimum habetur quod ad speciem directum est – em toda disposição do Direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita diretamente à espécie” (p. 111).
Afirmações doutrinárias, contudo, não devem ser acatadas imediatamente, sem nenhuma análise, pois o dogma é um verdadeiro opressor do conhecimento, da compreensão e da aplicação da justiça. O que se foi perpetuando como certo há séculos, hodiernamente pode não ter a mesma conotação, até porque a sociedade não se estagnou, muito menos o Direito. Limitar-se a seguir fórmulas e padrões para resolver conflitos é uma maneira infrutífera de solucionar os mesmos.  Dogmatiza-se a mente do indivíduo de tal forma que sobrevindo um caso que se distoe bastante dos demais, o intérprete não conseguirá desempenhar adequadamente o seu papel. A atividade do intérprete não deve ser simplesmente a mera repetição do que foi convencionado por alguém em um determinado contexto. Por mais que em muito se assemelhem as situações, cada caso concreto é diferente. Não seria justa uma análise superficial do mesmo como se este fosse igual a outro. Ao intérprete cabe empregar a compreensão no fenômeno da vida. E a esta é com certeza algo bem particular de cada ser humano, insuscetível de generalizações dogmáticas. Ressalta-se, contudo, que não se pode também condenar todo tipo de tradição, como se esta pudesse ser considerada uma folha passível de ser rasgada do livro da vida, pois a tradição, querendo ou não, faz parte de todo nosso contexto histórico, nos influencia na nossa pré-compreensão, nos nossos pré-conceitos. Deve-se levá-la em conta, desde que de maneira consciente, com espírito de compreensão e não de alienação e descomprometimento com a dinamicidade da vida.
Quando lidamos diretamente com a interpretação no Direito, devem ser considerados vários elementos que auxiliam o intérprete e ao mesmo tempo influenciam na sua compreensão. A saber: o elemento histórico, o teológico, os fatores sociais, a apreciação do resultado, a equidade, a jurisprudência, o costume, a ciência, analogia, os diversos tipos de leis, os brocardos e os princípios gerais do Direito.
Quanto ao elemento histórico é importante salientar a sua importância no nosso estudo. Acertadamente o autor apregoa que “o Direito não se inventa; é um produto lento da evolução, adaptado ao meio; com acompanhar o desenvolvimento desta, descobrir a origem e as transformações históricas de um instituto, obtém-se alguma luz para o compreender bem”. O elemento histórico, no entanto, não deve ser utilizado excessivamente, como se ele, sozinho, fosse infalível na resolução de todos os conflitos da humanidade. Bem como, ele também não deve ser repudiado. Seria o presente uma mera repetição do passado? Muitos defendem que sim, haja vista que muitos dos erros que o homem comete hoje são os mesmos que se cometeram no passado e que certamente serão cometidos futuramente. Por outro lado, o homem é um ser racional, dotado de discernimento e de capacidade para fazer suas próprias escolhas. Seria um posicionamento muito conformista colocar o homem como um ser inerte, incapaz de realizar transformações concretas. A história não é um simples desencadear de fatos repetitivos. Por isso que não se pode tê-la unicamente como foco. O presente é um leque repleto de possibilidades. Quando o hermeneuta se depara então com os Materiais Legislativos, deve ter em mente que “o legislador é um filho do seu tempo; fala a linguagem do seu século, e assim deve ser encarado e compreendido” (p. 113). Porém deve lembra-se de que a lei não deve ser interpretada simplesmente como se fosse a vontade exclusiva do legislador. 

Hermenêutica e aplicação do direito - Carlos Maximiliano Parte 4

Pelo visto, o autor entende a Hermenêutica como algo que se aplica em relação às leis, no sentido de que quando estudo as leis, procurando por seu sentido, aí estarei usando da Hermenêutica. Quando saio da perspectiva da lei, do que foi escrito, eu recorreria não à Hermenêutica, mas aos costumes.
A Hermenêutica, porém, não é tão limitada, a ponto de ficar encerrada em um conjunto de leis, como se a solução de determinado conflito pudesse ser encontrada pela simples análise do texto legal. Participa, na verdade, de um processo dialético na fusão de horizontes, o que possibilita encontrar a verdade. É uma exploração filosófica das características e dos requisitos necessários a toda a compreensão. Não é simplesmente o que o legislador ali colocou em um determinado contexto, mas uma ampliação de tudo isso e uma análise bem mais profunda, de modo que sejam levados em conta outros contextos, outras dimensões. Segundo Heidegger, ‘a própria filosofia é (ou devia ser) hermenêutica. Estaria a filosofia limitada a algo colocado em um determinado contexto, de forma imutável? Não.
Essa visão da Hermenêutica trabalhada por Maximiliano aborda, ainda que de forma sutil, um contexto realista, no qual a realidade que predomina é aquela construída por alguns juízes por meio de teorias para resolver os problemas da vida. Pelo que foi analisado até então, o autor demonstra seguir o pensamento da escola objetivista, só que ainda um pouco apegado ao tradicionalismo clássico. Ambos não são tão díspares, porém, também não se confundem como se fossem uniformes.
Na perspectiva da Livre Indagação, surge na Europa, em 1906, uma ampliação radical daquilo pregado pelo Direito Livre. Armínio Kantorowicz defende uma liberdade ampla ao juiz, relativamente criadora, em falta de disposição escrita ou constumeira, sendo que o magistrado deveria buscar o ideal jurídico onde quer que se o mesmo o encontrasse, ‘dentro ou fora da lei, na ausência desta ou- a despeito da mesma, isto é, a decidir proeter e também contra legem’. Procurando ser mais direto ao ponto, Carlos Maximiliando diz que a proposta de Kantorowicz seria algo como:                          
                                       “ não se preocupe com os textos; despreze qualquer interpretação,   
                                        construção, ficção ou analogia; inspire-se, de preferência, nos da-
                                        dos sociológicos e siga o determinismo dos fenômenos, atenha-se
                                        à observação e à experiência, tome como guias os ditames imedia-
                                        tos do seu sentimento, do seu tato profissional, da sua consciência
                                        jurídica” (pag. 60).


O autor nos conta ainda sobre Magnaud, conhecido como o “Bom Juiz”, que escrevia as sentenças segundo suas ideologias sociais e morais, sem se preocupar com a lei. Em relação a isso, diz que “ao invés do movimento subjetivo, deve prevalecer o instinto social”.  Este instinto levaria ao Estado a punir aquele que se mostrasse perigoso para a comunidade. O juiz, então, não sendo guiado por sentimentalismos, deveria atribuir uma pena a esse indivíduo, cabendo assim, à judicatura, manter o equilíbrio de interesses. Tal postura, segundo Carlos Maximiliano (pag. 69), “funde os dados econômicos e os eminentemente sociais a fim de assegurar o progresso dentro da ordem, a marcha evolutiva da coletividade, mantidas as condições jurídicas da coexistência humana”. Essa perspectiva da aplicação do direito nos faz lembrar muito do que se discute, especialmente pelas idéias de Karl Marx, sobre o fato de o Direito ser um instrumento de manutenção da ordem social estabelecida por poucos para a dominação da maioria, seria um status quo da concentração de riquezas e do poder.
Se analisarmos um pouco mais esse ‘instinto social’ que é aludido em Hermenêutica e Aplicação do Direito, veremos que de certo modo esse instinto social não tem sido de notória efetividade na sociedade (olhando sob o ponto de vista punitivo da coletividade em relação àqueles que a agridem). O clamor social é impresso todos os dias nas folhas dos jornais, é publicado na internet, transmitido pelas emissoras de rádio e televisão, de forma tão freqüente que já não se assusta tanto ao se ouvir notícias de impunidade, corrupção e violência. O instinto social, então, não tem recebido adequadamente as respostas do Estado. Aí vemos que esse ‘equilíbrio de interesses’ ainda não saiu do plano mitológico para a concretização na realidade.
O autor questiona o ‘sentimentalismo’, mas será mesmo que a prevalência do instinto social garante a fusão por ele mencionada, de modo a ser uma “marcha evolutiva da coletividade”? O que vemos é que, pelo menos até agora, principalmente após a propagação das idéias liberais, o que tem prevalecido é um instinto individual.  Além disso, quando se trata de ‘sentimentalismo’, por mais impessoal que possa procurar ser um juiz, ele sempre será um indivíduo situado em um determinado espaço, em uma determinada época, que terá uma vida permeada pela influência de fatores externos (como a política, a economia, a sociedade) e internos (como os valores, crenças, descrenças), ainda que queira ser insuscetível a todos eles.  Isso faz o juiz ter algum sentimento em relação à vida. De certo modo, essa busca pela justiça social, pela solidariedade, influencia o magistrado. Conforme cita Carlos Maximiliano: “o juiz, embora se não deixe arrastar pelo sentimento, adapta o texto à vida real e faz do Direito o que ele deve ser, uma condição da coexistência humana, um auxiliar da idéia (...) da solidariedade social”. Não convém, contudo, que o intérprete de revista de seus sentimentos, impulsos e preconceitos na resolução dos conflitos, mas sim que esteja sempre analisando suas idéias, de modo que estas não se inclinem mais de um lado do que para o outro, desequilibrando a balança da justiça.

Hermenêutica e aplicação do direito - Carlos Maximiliano Parte 3

Pelo visto, de acordo com Hermenêutica e Aplicação do Direito,essa idéia de não ser precisa a interpretação em textos claros foi se propagando pela escolástica ou dogmática, que é conhecida como o sistema primitivo da Hermenêutica, de caráter tradicional. Preceituava, além de outros pensamentos, que ao exegeta caberia descobrir a vontade do legislador. Os textos deveriam ser interpretados então conforme o que o interprete acreditava ser a vontade de quem fez a lei. A lei criada pelo legislador deveria vigorar conforme quis expressar seu criador.
A escolástica, no entanto, perdeu muito de seu espaço para o sistema histórico-evolutivo, que implantou certa modernização à teoria. Não se deve buscar simplesmente o que o legislador quis dizer, mas também aquilo que possivelmente ele quereria caso vivesse no dias atuais. Os que aderem a esse sistema buscam realizar a exegese construtora, já que procuram construir o sentido da norma ‘inamovível’ conforme a realidade. Ressaltando, contudo, que o interprete não cria nova lei, nem revoga às existentes. O que ele faz, conforme Maximiliano, é deduzir a regra para um caso concreto de acordo com as disposições vigentes.
Ao interprete não é cabida, como essência, a tarefa de legislar. Porém, constata-se que existe claramente no Direito uma desproporção entre a norma e o Direito propriamente dito, pois este não poder ter toda sua natureza esgotada em uma regra abstrata. A lei oferece apenas uma das faces do direito, que seria o conjunto orgânico. Ao exegeta, então, cabe a recomposição desse conjunto. Ora, poderia a realidade em seus diferentes contextos, nas relações espaço-tempo, estar abarcada em sua plenitude por um conjunto determinado de normas? Devemos considerar que as leis são criadas em um determinado contexto social a fim de regrar a vida em sociedade. No entanto, esta mesma sociedade não pára no tempo nem no espaço. Está em constante transformação, desdobrando-se em diversas atividades de aspectos morais, sociais e econômicos. Surgem novos fenômenos, idéias, técnicas. O interprete, a partir disso, atua na integração e complementação da própria lei escrita, o que não desqualifica o código, mas antes o complementa. Por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais, a necessidade de interpretação é permanente.                     
Quando tratamos das leis, é necessário salientar que estas, por mais bem feitas que sejam, são incapazes de abarcar todas as peculiaridades das relações humanas. Carlos Maximiliano faz uma alusão a Proteu, uma lendária figura mitológica grega, que tinha o dom da premonição. O legislador, em contraste com a figura de Proteu, não tem o dom de prever todos os eventos futuros, não é um profeta jurídico, o que torna o Direito um processo dinâmico, exigente de uma adaptação constante ao mundo dos fenômenos sociais e econômicos, que estão continuamente se transformando.
Interessante é salientar que muitos criticam o método clássico da Hermenêutica, apontando suas falhas, seu dogmatismo exarcebado, sem, contudo, deixar de permanecer omisso em relação à ‘solução’ do problema. São, nas palavras de Maximiliano, ‘demolidores’. A crítica é necessária, é útil para a reforma da lei. Porém não é infalível. Necessita não simplesmente de uma demolição das idéias vigorantes, mas sim uma construção. A crítica abordada segue o sentido técnico da palavra, que precede a interpretação. É por meio dela que se verifica a autenticidade da norma positiva e do costume, e, no caso do Brasil também examina a constitucionalidade do dispositivo. 
Na obra Hermenêutica e Aplicação do Direito é destinado um capítulo exclusivo sobre o juiz inglês. O autor crê que a “Grã-Bretanha possui a melhor magistratura do mundo”. Elogia a remuneração generosa recebida pelo juiz, o fato de a investidura no cargo ser tratada como uma honraria e ressalta que, após aposentar-se, o juiz ainda recebe uma ‘esplêndida’ pensão.  O que é realmente interessante é o fato de que os juízes não ingressam na carreira por meio de um concurso público, como no Brasil, mas sim por meio de uma nomeação. Agora, dizer qual é o sistema certo ou errado é algo bastante discutível. Afinal não há que se falar em um sistema certo, pois se fosse tão certo assim a justiça seria plena, não cerceada por corrupções políticas, econômicas, sociais e ainda morais, que são passíveis de existência em todos os lugares do mundo. Tratar então a judicatura inglesa como algo tão grandioso é uma influência marcante da visão eurocentrista. Herdamos de fato, e todo o Ocidente também herdou, muito do legado do direito europeu. Tal direito, contudo, deve ser apreciado e analisado de forma moderada e racional, sem envolver dessas idealizações que discriminam objetos sem explicações realmente plausíveis.
Ao tratar da aplicação do direito, o autor nos fala de várias teorias acerca da matéria. Uma delas é a da escola histórico-evolutiva, que não se contentava em interpretar amplamente os textos, mas criava na medida do possível um Direito novo. Entendia a lei como uma realidade histórica, devendo seguir o fluxo do tempo. Tomou como lema a Livre Indagação, ou ainda, o Direito Justo, ou Livre Pesquisa do Direito, passando a ser conhecida como escola do Direito Livre. Dela desdobraram-se duas correntes: a que desprezava a Hermenêutica, tendo esta uma função secundária; e a outra, que a autorizava, desde que esgotados os recursos tradicionais da interpretação. Esta última obteve uma maior aceitação, de modo que a solução deveria ser procurada nos textos positivos, compreendidos por meio da Hermenêutica, e, caso não fosse possível, recorrer-se-ia aos costumes, e, se com estes ainda não se lograsse êxito, caberia ao juiz a livre indagação. 

Hermenêutica e aplicação do direito - Carlos Maximiliano Parte 2

Carlos Maximiliano cita, no decorrer da obra, algumas sequências metodológicas para aplicar o direito, como, por exemplo: “busca-se, em primeiro lugar, o grupo de tipos jurídicos que se parecem, de um modo geral, com o fato a exame; reduz-se depois a investigação aos que, revelam semelhança evidente, mais aproximada, por maior número de faces; o último na série gradativa, o que se equipara, mais ou menos, ao caso proposto, será o dispositivo colimado”. No entanto, poderia mesmo o Direito estar sendo verdadeiramente alcançado simplesmente com uma atividade ritualística? Será mesmo que aplicar o Direito é uma tarefa já definida em si mesma, que seja, em termos de procedimento, igualmente aplicada pelos magistrados?
 Tendo em vista a necessidade de aplicar a lei a um determinado fato concreto, não é impossível que o seguimento desse procedimento possa levar o intérprete ao fim que se deseja, ainda que superficialmente. É feito um ‘esquadrinhamento’ para identificar os dispositivos concernentes ao caso concreto.  Porém, não deve ser feito de forma tão encadeada, não tanto pré-estabelecida, como se o juiz ao aplicar a lei fosse um robô que simplesmente segue passos pré-ditados, já que a aplicação do Direito deve transpor os limites de fórmulas e procedimentos estáticos, pois a vida possui como característica notável a dinamicidade, e o Direito acompanha a vida e funde-se a ela.                                                                                                                                                                                                                    
Faz-se de fato imprescindível aplicar o Direito na vida prática, pois de nada adiantaria um sistema jurídico que não tivesse o poder de sair da especulação teórica e transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e individual. Mas tal aplicação, para que seja efetiva e real, não pode dar-se de maneira superficial. É por isso que essa ‘interpretação metodológica’ da lei não se adéqua uniformemente ao Direito. Seria razoavelmente fácil aplicar os dispositivos legais de tal forma. Tem-se um determinado problema. Tem-se um conflito. Tem-se ainda um dispositivo que regula aquele conflito. Logo, esse dispositivo regularia aquele problema e dar-se-ia a solução.               
No entanto, o caso concreto não pode ser visto sob uma ótica tão simplificada da realidade, pois há muito mais fatores envolvidos em um só caso do que a mera relação: conflito a ser sanado ---- dispositivo sanador. Nesse ponto, vemos a necessidade de uma compreensão do fenômeno existencialista e da fusão de horizontes, que possibilitam um maior entendimento da vida e à descoberta da verdade.
Segundo Hermenêutica e Aplicação do Direito, hermenêutica e aplicação são termos distintos. A primeira pressupõe a segunda. A hermenêutica teria um só objeto, a lei. A Aplicação teria como objetos o Direito, no sentido objetivo, e o fato.
A Hermenêutica trata da interpretação. O autor trata esta como uma arte. Seguindo a perspectiva por ele abordada, ele foi feliz ao expandir o pensamento de que tal arte não seria um simples ‘deleite intelectual’, mas antes uma tarefa de grande importância prática, pois está intimamente ligada ao nosso cotidiano, nos auxiliando nas resoluções dos conflitos diários, no trabalho pelo progresso e nas demais áreas de nossas vidas. Seria uma espécie de ‘arte científica’, na qual o hermeneuta atua como um investigador esclarecido, sem ir de encontro à ciência. Interpretar, conforme Maximiliano, não é simplesmente tornar clara uma expressão, mas sim revelar o sentido apropriado para a vida real, e ‘conducente a uma decisão reta’. Tudo se interpreta, até mesmo o silêncio.
Predominava, há um certo tempo, o famoso dogma axiomático “in claris cessat interpretatio”. Segundo este, quando o texto fosse claro a lei não careceria de interpretação. Apesar de hoje a maioria dos doutrinadores tratar o brocardo como ultrapassado, há ainda alguns que seguem vertentes do tradicionalismo, como a do adágio “cum in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntatis quoestio (“quando nas palavras não existe ambigüidade, não se deve admitir pesquisa acerca da vontade ou intenção”.). Pedro Lenza, por exemplo, em sua obra Direito Constitucional Esquematizado, (pag. 90), diz que : “Como regra fundamental, lembramos que, onde não existir dúvida, não caberá ao exegeta interpretar (vide, por exemplo, o art. 18, parágrafo 1º., da CF/88, que aponta, como Capital Federal, Brasília – não cabendo qualquer trabalho hermenêutico).” Será mesmo que nesse caso não cabe interpretação? Como pode não haver qualquer trabalho hermenêutico? Se a Hermenêutica, envolve a interpretação,  há um entrelaçamento entre as mesmas. Mais acertado é o pensamento de Carlos Maximiliano: Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação”. (pag. 29). O autor diz ainda que: “Que é lei clara? É aquela cujo sentido é expresso pela letra do texto. Para saber se isto acontece, é força procurar conhecer o sentido, isto é, interpretar. A verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma’ (pag 30).
O mesmo autor, por outro lado, faz uma colocação duvidosa em relação ao mesmo assunto ao dizer que o magistrado apenas interpreta o Direito quando surge a dúvida, sobre a exegese, em um caso forense (pag. 48). Para quem afirma que tudo se interpreta, até mesmo o silêncio, colocar-se como o fez Carlos Maximiliano abre uma cortina de interrogações no leitor, que, se for leigo no assunto, não consegue identificar claramente a posição do autor quanto à matéria. Isso demonstra que apesar de se falar bastante que os brocardos citados estão ‘ultrapassados’ e que são ‘obsoletos’, ainda há certas disparidades doutrinárias sobre a temática.

Hermenêutica e aplicação do direito - Carlos Maximiliano Parte 1



Hermenêutica e Aplicação do Direito é mais uma das obras clássicas de estudo da Hermenêutica. Composta por 337 páginas, a obra foi inicialmente publicada em 1924, conforme prefacia o autor, Carlos Maximiliano, que procurou nitidamente ‘escrever uma obra vazada nos moldes da doutrina vigente’. É uma espécie de transição do pensamento doutrinário, que deixa o dogmatismo extremado, sem, contudo, renegar o método na interpretação. É uma obra que tem muito prestígio no Brasil, sobretudo pelo caráter conservador do foro. O próprio autor colocou em seu prefácio que, “com escrúpulo e sinceridade procurei (...) o postulado estabelecido, a ciência jurídica atual: nem retrocesso, nem arroubo revolucionário”.
Hermenêutica e Aplicação do Direito não reúne todos os seus esforços para o rompimento de paradigmas, mas antes procura dissertar acerca do que já foi estabelecido. Levando em consideração o contexto histórico e social em que Carlos Maximiliano escreveu a obra, podemos perceber que o autor estava ‘antenado’ com as discrepâncias doutrinárias do período e ciente da possibilidade de uma maior ‘livre indagação’ proeter legem no futuro.
O estudo da obra é recomendado a todos aqueles que se interessam pelo fenômeno hermenêutico, sejam aos filiados de uma perspectiva ontológica, sobre as considerações existencialistas do Ser, bem como aos defensores de uma posição epistemológica, já que se ressalta a questão da aplicação da hermenêutica no Direito, na realidade prática.
Isso se justifica pelo fato de provocar no leitor uma maior indagação acerca das doutrinas há muito defendidas e discutidas no âmbito da Hermenêutica; como seria uma aplicação dessa Hermenêutica na nossa cotidianialidade, o que revela uma forte preocupação do autor em relação à utilidade prática da Hermenêutica.
A partir do início de sua obra, Carlos Maximiliano conceitua a Hermenêutica como a “teoria científica da arte de interpretar”, que tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.  Aplicar o Direito, por sua vez, seria enquadrar a norma jurídica no caso concreto, ou ainda, descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano.
Logo de início, já se pode identificar que o autor segue algumas idéias de Betti, que vão se clarificando cada vez mais no decorrer da obra. A Hermenêutica é então tida como uma teoria normativa da interpretação, um objeto de consideração epistemológica. A nosso ver, contudo, mais acertado é o pensamento de Heidegger, segundo o qual a Hermenêutica não seria científica, epistemológica e metodológica, mas filosófica, ontológica e existencial. Não seria uma simples teoria da compreensão, como se as produções culturais tivessem um mesmo sentido objetivo para todos. A cultura seria uma manifestação do ser no mundo, sendo este indefinível e subjacente a tudo. Esse ser no mundo se revela dinamicamente na existência humana e se autocompreende por meio da compreensão. O estudo desta se confunde com o estudo da existência.  

A dicotomia entre o Direito Público e o Direito Privado

A divisão do direito objetivo em público e privado remonta ao direito romano, o ius civile. Seria então, de acordo com Ulpiano, o direito público aquele que corresponde às coisas do Estado (ius publicum). O direito privado, por sua vez, seria aquele que pertence à utilidade das pessoas, ou seja, seria o regulador dos interesses particulares, de modo que disciplinasse as relações entre os cidadãos e os limites do indivíduo em seu próprio interesse (ius privatum).
Com isso, ter-se-ia dois pólos de direitos, o público e o privado, sendo cada um regulado conforme seu regramento respectivo. Entretanto, tal posicionamento tem se mostrado insuficiente, pois as normas não são antagônicas de forma que se estabeleçam pólos distintos. Na verdade, elas se interpenetram, e isso impossibilita distinguir perfeitamente as suas esferas de incidência, pois as normas em geral são destinadas à proteção de todos os interesses, sejam os públicos como os particulares. O critério, em vista do exposto, da utilidade e interesse não atinge plenitude.
Há também o critério do fator subjetivo, que analisa a natureza do sujeito, titular da relação jurídica. Quando o Estado se relaciona com outro Estado ou com o cidadão é acionado o direito público. Se for o caso da relação dos indivíduos entre si, tem-se o direito privado. Tal critério, contudo, é insatisfatório, visto que muitas vezes o próprio Estado atua como particular, não sendo usado diretamente o direito público, mas sim o privado. Também no direito privado o Estado pode interferir impondo sua vontade e tolhendo a autonomia do particular em alguns casos. São os chamados preceitos de ordem publicam que, segundo Silvo de Salvo Venosa, “embora não pertençam necessariamente ao chamado Direito Público, as suas normas equiparam-se, dada sua força obrigatória inderrogável pela vontade das partes”.
O critério finalístico cuida da perspectiva teleológica do interesse jurídico tutelado. Se o fim for de interesse geral, tem-se o direito público. Se for o interesse dos particulares, tem-se o direito privado.
Há ainda a teoria do ius imperium, na qual o direito público regula as relações do Estado e de outras entidades com poder e autoridade, enquanto o direito privado disciplina as relações particulares entre si, com base na igualdade jurídica e no poder de autodeterminação. Entretanto, até mesmo no direito privado há relações jurídicas de subordinação, como no direito de família.
O direito, porém, nem é público nem privado, visto que é um só. Divide-se nesses dois grandes ramos para fins meramente didáticos, o que torna desnecessário profundo debate acerca da temática. Na prática, fala-se mesmo em normas tipicamente de direito público e de direito privado.  Dessa divisão tem-se o direito civil como o grande cerne do direito privado, além do direito comercial, direito do trabalho, direito agrário, direito marítimo, direito do consumidor, direito aeronático. Ao direito público pertence o direito constitucional, o direito administrativo, o direito tributário, o direito penal, o direito processual, o direito internacional e o direito ambiental. 
Ressalta-se, todavia, que ainda há autores que consideram essa divisão. Miguel Reale, por exemplo, defende que toda ciência precisa ser dividida, ter as suas partes claramente discriminadas, para ser bem estudada. Considera válida a distinção apregoada pelos romanos, desde que com algumas complementações, uma atendendo ao conteúdo e a outra com base no elemento formal. Em sua obra, Lições Preliminares de Direito, p. 336, ele dispõe da seguinte forma:
Quanto ao conteúdo ou objeto da relação jurídica:
a-1) Quando é visado imediata e prevalecentemente o interesse geral, o Direito é público.
a-2) Quando imediato e prevalecente o interesse particular, o Direito é privado
Quanto à forma da relação:
b-1) Se a relação é de coordenação, trata-se, geralmente, de Direito Privado.
b-2) Se a relação é de subordinação, trata-se, geralmente, de Direito Público.
O mais acertado é que o direito é um todo indivisível. A divisão didática é importante para melhor apreensão das particularidades dos casos, mas não é válida a ponto de congelar a essência das normas, delegando-as definitivamente a determinados planos. Sob essa perspectiva, de estabelecermos alguma divisão didática, acertada é a opinião de Silvo de Salvo Venosa, que diz: “Melhor será considerar como direito público o direito que tem por finalidade regular as relações do Estado, dos Estados entre si, do Estado com relação a seus súditos, quando procede com seu poder de soberania, isto é, poder de império. Direito privado é o que regula as relações entre particulares naquilo que é de seu peculiar interesse”.
Vemos atualmente o desenvolvimento de microssistemas como o Código de Defesa e Proteção do Consumidor, que tem sido reconhecido por muitos não como direito privado nem direito público, mas sim como um terceiro ramo, o direito social.
Com isso, vemos que os conceitos no direito como ciência não são engessados, de modo que muitas mudanças podem ocorrer no decorrer dos anos. Antigamente, via-se bem distinguida essa divisão entre o direito público e privado. Depois, passou-se a considerar essa divisão didática. E, hoje, há quem veja mais uma divisão.




Referência Bibliográfica

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. 7ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2009.